quarta-feira, junho 02, 2010

tiros nos pés


(...) «Um governo minoritário e acossado, uma maioria ocasional composta por partidos que se detestam e uma votação quase distraída. Num país em convulsão com crise e desemprego, os parlamentares juntam-se momentaneamente, o Tribunal Constitucional cede à ideologia, o Presidente lava as mãos como Pilatos e muda-se a definição de casamento. O povo não foi consultado, não houve debate profundo nem longas elaborações. Um grupito de deputados, cheios da própria certeza que querem impor ao mundo como verdade absoluta, chegou para alterar o que os milénios tinham conservado.


Para lá da questão concreta, sobre a qual muito se escreveu, o que assusta é a fragilidade do quadro institucional. Os mais preocupados deviam ser os partidários da nova lei, porque assim como veio, um dia irá com igual facilidade. Aliás, o exemplo da Califórnia, onde uma lei equivalente não chegou a durar seis meses em 2008, aponta nesse sentido. Mas se este assunto é crucial, não é só a ele que se limita o problema. Se até o casamento mudou assim, o que é que está a salvo? Tudo fica fluido.


Esta lei não surgiu do nada. Ela constitui apenas o mais recente passo de uma vasta campanha de promoção do erotismo, promiscuidade e depravação a que se tem assistido nos últimos anos. Por detrás de leis como o aborto, divórcio, procriação artificial, educação sexual e outras está o totalitarismo do orgasmo. Parece que o deboche agora se chama "modernidade". Mas se um dia, em vez de uma maioria porcalhona, tivermos um parlamento nihilista, espírita, xenófobo ou iberista, o que salva a identidade nacional?


Hoje mesmo, na actual composição parlamentar, não será difícil encontrar uma maioria para apoiar coisas abstrusas, como a proibição de touradas ou rojões, imposição da ordenação sacerdotal de mulheres ou a obrigatoriedade de purificadores atmosféricos. Aliás, uma lista exaustiva dos disparates em que os nossos deputados acreditam encheria volumes. Este episódio revela com dramática clareza a enorme fragilidade do sistema que tanto prezamos e louvamos. Uma democracia vale o que valer a dignidade e o respeito dos seus democratas.

A nova lei, apesar de ser um marco milenar em termos formais, poucas consequências práticas terá. Depois do folclore momentâneo, amortecido pela crise e o campeonato do mundo, as coisas ficarão quase na mesma. Aliás, ao eliminar a aura de minoria perseguida de que têm gozado os comportamentos sexuais desviantes, vai finalmente revelar-se a sua verdadeira realidade e assim contribuir para destruir-lhes o encanto.» (...)
(J. César das Neves, no DN de 31 de Maio de 2010)

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