quinta-feira, outubro 11, 2007

Até o PCP anda mais lúcido do que o nosso PM!


artigo no jornal "Avante", orgão oficial do Partido Comunista Português

«Proteger, disse ele
por Correia da Fonseca»



«Como de costume, foi a TV que nos deu a boa notícia: em digressão não sei bem por onde, nem é isso que especialmente interessa, o senhor Presidente da República fizera declarações em que exprimia a sua preocupação com as grávidas portuguesas e a sua necessária protecção. Não tanto por elas próprias, esclareça-se, mas por causa dos bem conhecidos problemas demográficos que defronta o País, terra de gente cada fez mais velha e cada vez menos numerosa. Vimos mesmo o senhor presidente a fazer contas, que aliás são como é sabido a sua especialidade, e a anunciar que no ano não sei quantos, mas sabe-o ele, seremos apenas sete milhões. De onde os seus cuidados com as grávidas; não tanto com as portuguesas que já o estão, mas com as que ainda não estão grávidas mas o interesse nacional reclama que o venham a estar.


Por mim, e sobretudo para muitas e muitos como eu, que precisam de que gerações mais novas entrem no mercado de trabalho (e descontem para a Segurança Social, pormenorzinho muitas vezes esquecido) para que nos possam ser pagas as reformas a que tivermos direito, porque o que descontámos durante décadas parece ter-se volatilizado, só temos que agradecer ao senhor presidente.

Embora, já se vê, dificilmente os bebés que nasçam agora contribuam para nos salvar de uma velhice paupérrima. Em suma, embora por outras palavras e concentrando o seu discurso nas grávidas actuais ou futuras, o que o PR disse foi ser necessário que os portugueses tenham mais filhos. De onde a protecção das grávidas. Aos ouvidos do senhor presidente deve ter chegado a informação de que as grávidas andam um bocado desprotegidas, o que é triste verdade. Mas como o senhor presidente está rodeado de um numeroso e qualificado
staff de assessores, consultores e pessoal correlativo, é de esperar que nos próximos tempos lhe cheguem mais informações acerca do assunto, com destaque para a informação de que para estar grávida é preciso, como regra geral, que a mulher o queira estar. O que, nos dias actuais, é difícil. O resto Aparentemente, a coisa é fácil e até apetecível: o homem e a mulher encontram-se, gostam-se, fazem amor dispensando cuidados que aliás o senhor prior não encara com bons olhos, nove meses depois o pimpolho está cá fora, a taxa de natalidade fica um pouco melhor. Porém, para que esta simples sequência ocorra são necessárias certas condições antes mesmo que a grávida o seja.

Talvez antes do mais, que o casal tenha mínimos meios que lhe permitam viver, pois se fazer amor é em princípio barato, sobreviver é mais caro. Esses meios mínimos supõem um emprego, o que está muito difícil, como o senhor presidente terá ouvido dizer. E mais: é preciso que no emprego da futura grávida a futura gravidez não seja passaporte assegurado para o desemprego. E mais: é indispensável que futura mãe e futuro pai tenham uma casa para habitar e onde habitará a criança, pois aquilo de dar à luz em palheiros só uma vez teve final feliz e foi há mais de 2000 anos. E mais: será necessário que alguém tome conta da criança quando mãe e pai tiverem de ir trabalhar, acontecendo que creches e apoios equiparáveis são poucos e caros. E mais: a bonita e pelos vistos patriótica decisão de engravidar é um risco enorme em terra onde são cada vez mais os cidadãos e cidadãs que não sabem se uns meses mais tarde não estarão desempregados, pois a precariedade dos postos de trabalho tem vindo a ser uma epidemia bem mais perigosa que a gripe das aves, contra a qual as trombetas dos
media alertam bem mais que contra os contratos a prazo.

E mais: em cada mês de Setembro, o custo do material escolar, aproximando-se do actual salário mínimo, suscita nas eventuais futuras grávidas um inevitável fastio pelo projecto de ter filhos. E mais: uma visita a um centro de saúde informará o senhor presidente dos motivos que provocam em prováveis futuras mães idêntico fastio, pois bem se sabe que as crianças precisam de cuidados médicos e que o SNS se está a tornar apenas uma sigla. Por tudo isto e pelo mais que aqui já não cabe, o senhor presidente concluirá que proteger as grávidas é bonito, mas é pouco. Que faltará o resto, que é um grande resto. Que está a ficar maior a cada dia que passa.»

Sem comentários: